Rui Pena Pires
22 de julho de 2020
1. A Assembleia da República criou, há cerca de um ano (agosto de 2019) a Ordem dos Assistentes Sociais. Antes, porém, criou a profissão dos assistentes sociais. Sabe o que é um assistente social? Segundo a lei, a “profissão de assistente social abrange todos os profissionais que exerçam a sua atividade de serviço social.” E o que é a atividade de serviço social? Pergunta por responder. Como identificamos então um profissional de serviço social, isto é, um assistente social? Fácil. Um assistente social é um licenciado em serviço social. Ou seja, na ausência de definição da profissão de serviço social, o que na realidade define um assistente social é um diploma do ensino superior. É uma credencial e não uma atividade específica que define a profissão de assistente social. Porquê? Desde logo porque o legislador não consegue definir o ato profissional que quis proteger criando uma profissão e uma ordem. A isto chama-se, na sociologia, desde Weber, fechamento social por credencialismo.
2. Os processos de fechamento social são modos de criação de privilégios obtidos por monopolização de oportunidades de acesso a certos recursos. No caso que temos estado a referir, o fechamento em causa traduz-se na exclusão de acesso a segmentos protegidos do mercado de trabalho. Como sublinhava Frank Parkin, num dos textos mais importantes sobre esta temática, “a característica distintiva do fechamento por exclusão é a tentativa de um grupo assegurar para si uma posição de privilégio à custa de outros grupos”. O fechamento é o resultado “de uma forma de ação coletiva que, intencionalmente ou não, dá origem a uma categoria social de inelegíveis”, afastados da possibilidade de acesso aos recursos em disputa, no caso, lugares no mercado de trabalho.
3. Parkin contesta que a relação entre processos de fechamento por exclusão suportados por credenciais especializadas resulte da necessidade absoluta dessas credenciais por complexificação dos postos de trabalho objeto de monopolização. Na maioria dos casos, afirma, aqueles processos de fechamento são, simplesmente, uma forma de discriminação que usa o credencialismo para se legitimar. Pergunta: a criação de ordens profissionais é a criação de mecanismos de discriminação? Resposta: é sempre e, na maioria dos casos, sem qualquer justificação que não seja a proteção de interesses particulares.
4. Haverá casos em que se justifica a criação de ordens profissionais devido às características da atividade profissional que se pretende regular. Ou melhor, que se pretende que seja autorregulada por delegação de poderes do Estado. É, por exemplo, o caso das ordens dos médicos, dos advogados, dos revisores de contas, dos engenheiros, neste último caso, apenas e só quando estes atuam na qualidade de responsáveis por projetos de engenharia. Diria que, provavelmente, a maioria das outras ordens não têm qualquer outra justificação que não seja a legitimação, pelo poder político, de posições de privilégio que autorizam o exercício de práticas discriminatórias ilegítimas mas, curiosamente, legais. É o caso, claramente, da Ordem dos Assistentes Sociais, que não é sequer sustentada pela identificação, ainda que vaga, de qualquer ato profissional com características que justifiquem a proteção regulada do seu exercício. Zero.
5. Mesmo no caso das ordens que se justificam do ponto de vista da ética profissional, não deixam de existir consequências discriminatórias mais ou menos extensas, graves e arbitrárias em resultado do exercício dos poderes que lhes foram delegados. É por isso que a criação de ordens é feita por lei na Assembleia da República. As ordens profissionais não são associações de profissionais. São entidades de direito público que regulam, por delegação e em nome do Estado, atos profissionais muito específicos. Na sua criação é por isso necessário pesar bem a amplitude dos poderes que lhe são conferidos e criar, nos estatutos que a Assembleia da República aprova, mecanismos que contrabalancem esses poderes impedindo o seu exercício arbitrário e desproporcionado. Olhando para o número de ordens profissionais criadas em Portugal, bem como para os poderes que lhes foram concedidos, é fácil concluir que reina a desordem no mundo das ordens. Há ordens a mais, poderes a mais e equilíbrio de poderes a menos.
6. Voltemos ao caso da Ordem dos Assistentes Sociais recentemente criada. Que processos de exclusão estão em causa neste caso? Simplesmente a monopolização do exercício das atividades sociais do Estado, diretamente ou por protocolização com organizações de solidariedade social. Os novos inelegíveis? Sobretudo todos os licenciados em ciências sociais e humanas que até agora desempenhavam essas atividades, os quais, de um dia para o outro, se viram excluídos de participarem, por exemplo, em concursos recentemente abertos para substituírem contratos de trabalho precários no setor por contratos permanentes. Sociólogos que há mais de dez anos trabalhavam com sucesso, mas em regime precário, em áreas como a do rendimento social de inserção, são agora excluídos de concursos para o mesmo trabalho mas reservados exclusivamente a assistentes sociais e psicólogos. Bastava, aliás, esta não diferenciação entre duas formações tão diferentes, que apenas têm em comum o facto de sustentarem duas ordens profissionais, para se perceber o caracter exclusivamente discriminatório do fechamento em causa.
7. Não estando definidos os atos profissionais protegidos por aquelas ordens relevantes para o exercício de atividades sociais, por que razão estão as câmaras municipais a produzir legislação que discrimina arbitrariamente e cria desemprego de profissionais com provas dadas? Não se percebe. Mas não é aceitável. E por que razão há no Parlamento tanta desordem no tema das ordens? Não quero tentar perceber. Mas é legítimo reclamar do Parlamento a revisão do seu modo de atuação neste domínio e a aprovação de uma lei-quadro que discipline a criação de ordens bem como a amplitude diferencial dos poderes que lhes podem ser concedidos. E a revisão urgente dos estatutos das ordens que se mantiverem.
[Frank Parkin, Marxism and Class Theory: A Bourgeois Critique, Londres, Tavistock, 1979]
Artigo em https://canhoto.blog/2020/07/22/desordem-nas-ordens/#more-709
[Foto de Carolina Pimenta in https://unsplash.com/