Testemunho sobre a luta clandestina da Maria José Maranhão no Brasil e no Chile
Escreve uma amiga e camarada da Maria José na sua luta contra a ditadura no Brasil e no Chile,
Ângela Mendes de Almeida:
“No Brasil a Zé foi militante do poc, atuando “área interna”, isto é, todos os trabalhos necessários para a organização manter-se na clandestinidade. Em julho de 1971 houve uma grande queda de militantes, entre os quais Merlino, que foi, em poucos dias, assassinado. Foi nesse momento que a Zé foi procurada pelos agentes do doi-codi (o departamento da polícia política da ditadura) no seu local de trabalho, no Cursinho Visconde de Cairú (curso de preparação para exames vestibulares). Momento de sorte e de solidariedade: os colegas que estavam na entrada responderam que ela não estava, enquanto outros a faziam sair por uma outra porta. Com isso ela escapou do destino de todos que foram presos, de tortura bárbara e longo tempo de prisão.
Não sei como ela saiu do Brasil, indo para o Chile. Imagino que se utilizou de seu documento de imigrante, enquanto portuguesa. No Chile ela trabalhou em pesquisa na Universidade do Chile e apoiou o poc-Combate, sempre ajudando as pessoas com sua enorme solidariedade.
Exatamente pela sua boa vontade com tudo que lhe pedíssimos, permitiu que a tiragem de nosso “Caderno de Combate” e outros materiais de divulgação ficassem, em grande quantidade, estocados em seu pequeno apartamento. Quando aconteceu o golpe de 11 de setembro e, poucos dias depois, eu entrei na Embaixada do Panamá, a Zé, mais uma vez solidária, assim que foi possível foi me visitar, com outro companheiro, Luciano. Não era possível visitar, o local estava cercado de carabineiros (polícia chilena). Ela me levava roupas e um livro que tinha começado a ler: Arquipélago Gulag, de Soljenítsin. Luciano foi preso e enviado para o Estádio Nacional (do qual depois conseguiu sair). A Zé não foi presa por estar com passaporte português. Estávamos ainda de 1973 e ela tinha uma montanha de materiais clandestinos no apartamento. Depois me contou que o material, que era muito, teve que ser levado em várias viagens de carro, junto com uma amiga dela, chilena, que trabalhava na Embaixada da França, para ser queimado na lareira francesa. Com seu precioso passaporte português a Zé viajou depois para a Argentina e daí para a França, pois tinha contatos de pesquisa com geógrafos pesquisadores universitários. Dois anos depois, em 1975, quando eu precisava sair da Argentina, depois da prisão de vários companheiros da organização clandestina em que participava nesse país, estava sem dinheiro e sen passaportes utilizáveis, ela, mais uma vez comprou uma passagem para mim, para Paris, e facilitou-me o seu novo passaporte português, pós 25 de abril, para que eu pudesse atravessar o Atlântico passando necessariamente pelo Brasil, onde era procurada.
A Zé era a pessoa mais solidária do mundo. Durante todos os anos depois, em Lisboa, era ela que os brasileiros procuravam quando viajavam para Porgugal. Em 10 de novembro de 2010 o governo brasileiro reconheceu a militância da Maria José na luta contra a ditadura, concedendo-lhe a Amnistia.”
Caros/as colegas,
Como sabem, faleceu há dois dias a nossa colega Maria José Maranhão. Gostaria de partilhar convosco um texto de homenagem, escrito por amigos e colegas do ISCTE.
“Maria José Maranhão nasceu na Nazaré em 1939 e faleceu em Lisboa em 2019. Nos anos 40 a família emigra para o Brasil. Forma-se em Geografia e é investigadora na Universidade de São Paulo até 1972. Militante contra a ditadura, é perseguida e vive com tristeza imensa a prisão, tortura e morte de companheiros. Exila-se no Chile de Allende em 1972 e entra na Universidade do Chile de novo como investigadora. No ano seguinte é obrigada, ainda, a exiliar-se, partindo para Paris onde é acolhida por colegas investigadores. Em 1975 instala-se em Portugal. É professora no ISCTE e investigadora no CET entre 1976 e 2008, querida de estudantes, colegas e funcionários. Em Novembro de 2010 o governo brasileiro, no âmbito da lei da Amnistia, reconhece a sua luta contra a ditadura.
É impossível sintetizar o essencial da memória que retemos da Zé. Ficam algumas das palavras espontaneamente expressas no momento da despedida.
A Zé era a pessoa mais solidária do mundo. Recordamos a sua grande generosidade, a sua integridade e dedicação às causas do bem-comum. A Zé significava para nós a amizade construída ao longo de dezenas de anos; sempre presente nas boas e más conjunturas institucionais e nos bons e maus momentos das nossas vidas pessoais. A Zé sempre tinha palavras carinhosas e pacificadoras para nos oferecer, para nos animar nas nossas lutas. Nunca a esqueceremos!
A casa da Zé era a casa do mundo e da vida! De portas sempre abertas acolhia todos os que, do Brasil ou da América do Sul, procuravam porto seguro. E reunia amigos. No ISCTE não esquecemos os muitos jantares que a Zé preparou, com carinho e com afecto… Entre música, conversa e discussão, impunha-se o prazer de estarmos juntos, e os jantares acabavam tarde. Lembramos a Zé de olhos brilhantes quando se cantava Elis ou Chico, ou Saudades do Brasil em Portugal. Foi bonita a festa pá.
Como muitos lhe ouvimos dizer com ternura e elegância no seu sotaque brasileiro, Saravá, meu bem.”
Helena Carreiras