O Sociedade Civil é um programa com História que quer fazer cada vez mais parte do dia-a-dia de todos os portugueses. São questões públicas debatidas por gente distinta, temas particulares apresentados de forma clara.
Apresentado pelo jornalista Luís Castro, de segunda a sexta-feira, às 14h00, na RTP2 e noutros horários nos canais internacionais.

Paulo Peixoto*, Presidente da APS, participa no episódio que será transmitido no próximo dia 5 de outubro, às 14h00, na RTP2 e que será dedicado ao tema “Bom Senso”.

Neste episódio participam também Raquel Costa, jornalista e diretora executiva da MAGG; Elsa Cerqueira, Professora de Filosofia e Vencedora do prémio Teacher Prize 2021 e Luísa Lima, psicóloga.

Algumas reflexões sobre o “Bom Senso”

Porque se apela tão frequentemente ao bom senso? Há várias razões. Podemos destacar três.

Por um lado, porque vivemos em sociedades crescentemente marcadas por tensões, pela diversidade e pela exacerbação das diferenças. Em sociedades multiculturais, multiétnicas e multirreligiosas, o acantonamento de minorias e as medidas discricionárias revelam muitas vezes ausência do chamado bom senso.

Por outro lado, porque as evidências das atrocidades, sejam as atrocidades contra a humanidade, sejam as atrocidades contra o planeta revelam de uma maneira óbvia que deveríamos ir num sentido (num bom senso) contrário àquele (o mau senso) que estamos a seguir.

Em terceiro lugar porque as ameaças globais e emergentes (como a pandemia) nos deixam com menos certezas em relação ao que fazer. Por regra, quanto menos a ciência é uma luz que é capaz de nos guiar com toda a certeza, mais se apela ao bom senso.

É verdade que para a sociologia o bom senso nem sempre é bom? É uma questão difícil. Teríamos de discutir, talvez, o que é o bom senso e o que é o senso comum.

Diria, de um modo suave e simples, que a sociologia desconfia do senso comum e que desconfia ainda mais do bom senso. O senso comum é a sabedoria que resulta das evidências do dia-a-dia. É a virtude de um pensamento prático e socialmente partilhado.

A questão é que as evidências do dia a dia são muitas vezes enganadoras. Como dizia Einstein, o senso comum é um conjunto de preconceitos que adquirimos quando temos 18 anos.

Mas a sociologia reconhece a virtude do senso comum enquanto conhecimento comunitário. Reconhece o mérito da capacidade do senso comum em reagir a um intelectualismo excessivo que descontextualiza as relações sociais. A sociologia, e todos nós, devemos reconhecer ao senso comum a capacidade em definir o sentido de medida e os limites civilizacionais: o senso comum diz-nos que há coisas que não se fazem porque são desumanas.

O bom senso, tende a ser visto pela sociologia como um discurso ideológico. Diz-se que ter bom senso é ter discernimento, é ter lucidez. No fundo, é partilhar a razão e as evidências das maiorias. Uma das razões que faz com que a ideia de bom senso não seja acarinhada pela sociologia, é que essa ideia de bom senso impõe a ditadura das maiorias e dos opressores.

O bom senso é, muitas vezes, a força que impõe o pensamento único. Os políticos, por exemplo, gostam de propagar o bom senso. Pede-se bom senso, muitas vezes, para que as opções não sejam questionadas como opções e para que sejam vistas como evidências inquestionáveis e óbvias. “É evidente”; “Todos sabemos bem que…”; “Francamente”; “Honestamente”; “Como toda a gente pode ver”; (…) são vocábulos do discurso político que apelam a uma certa evidência que visa furtar-se a uma argumentação rigorosa. Ao escrutínio público. Por isso, sim, o bom senso raramente é bom.

O bom senso e o senso comum partilham algo que suscita a desconfiança da sociologia. A base de onde ambos emergem são os sentidos. Os sentidos são, por vezes, sinónimo de paixão e, por outro lado, de opiniões infundadas, ou fundadas em conhecimento meramente contingente. O senso comum e o bom senso são frequentemente etnocêntricos ou sociocêntricos, baseando-se em preconceitos racistas, sexistas ou xenófobos.

Que fenómenos ou exemplos traduzem atualmente a relevância social do bom senso? A pandemia tem sido um exemplo claro do apelo ao bom senso. Um pouco por todo o lado, o que se tem dito é que “Existem regras, mas em toda a parte prevalecerá o bom senso”.

O apelo ao bom senso, no caso da pandemia, muitas vezes não tem sido outra coisa que não seja uma maneira de mascarar a ausência ou a arbitrariedade das regras. A manipulação das regras para fins políticos ou para gestão da economia. Os políticos também usam máscaras. O bom senso é a máscara dos políticos. O chamado passe sanitário é só bom senso ou é também um instrumento para legitimar um estado securitário que quer aproveitar a pandemia para aumentar o controlo sobre os cidadãos? Será as duas coisas. Mas na perspetiva da ideologia dominante é apenas bom senso. O negacionismo é bom senso de quem critica à ciência uma ausência de certezas num momento em que mais necessitamos da ciência ou é um reflexo da estupidez humana e um oportunismo que se apresenta aos populistas e aos exibicionistas? Para estes é, certamente, apenas bom senso.

Costuma dizer-se que, sem o bom senso o talento e o conhecimento não valem de nada. Num mundo de urgências, porque é urgente promover a integridade académica?

Na forma como se exercita a ideologia do bom senso, diz-se, frequentemente, que é preferível ter bom senso sem educação, do que ter educação sem bom senso. Contudo, a educação, no sentido da educação escolar, é aquilo que melhor nos prepara para não aceitar as evidências que visam subalternizar-nos ou diminuir-nos num mundo de interesses poderosos e conflituantes.

A integridade significa sermos inteiros. Significa aderir por inteiro a valores que consideramos fundamentais nas nossas vidas. Aquelas coisas que, a bem da humanidade, a bem das sociedades em que vivemos, o senso comum nos diz que não podemos de todo fazer.

Se promovermos um sistema de formação em que se acredita e se tolera que o sucesso só é possível ou que é mais fácil se cometermos fraude e se fizermos batota, ter bom senso na universidade significará não ver outra solução possível que não seja fraudar para ter sucesso. Não será por acaso que um dos preconceitos mais disseminados na nossa sociedade se baseia na ideia tão difundida pelo senso comum que a corrupção compensa e que ser honesto penaliza.

*Paulo Peixoto é sociólogo. Presidente da Associação Portuguesa de Sociologia. Provedor do Estudante da Universidade de Coimbra. Pesquisa sobre sociologia urbana e sobre fraude e plágio. Membro da Direção do Institute of Research and Action on Fraud and Plagiarism in Academia, editou recentemente “L’urgence de l’intégrité académique”.